Caso Ford: Em nota, Sistema Confea/Crea analisa cenário automotivo, após anúncio do fim da produção da montadora no país

O anúncio do encerramento das atividades da Ford no Brasil suscita questões entre os profissionais da Engenharia acerca da empregabilidade, da ciência e tecnologia, do desenvolvimento industrial e do modal de transporte eminentemente terrestre.

Cinco mil funcionários, entre eles engenheiros, estão desempregados a partir do fechamento das fábricas em Camaçari (BA), Taubaté (SP) e Horizonte (CE). Essa conta é ainda maior, chegando até 72 mil afetados, se forem contabilizados os trabalhadores indiretos. Em 2019, a Ford já havia encerrado as atividades da unidade em São Bernardo do Campo (SP), como parte da estratégia de reestruturação global da companhia. Estratégia essa que desprezou o mercado doméstico. O Brasil, desde fevereiro de 2005, possui legislação que cuida da recuperação judicial das empresas, mecanismo focado na preservação de pessoa jurídica de direito privado, que impõe o encerramento das atividades somente em último caso. Isso porque, na dicção do Constituinte de 1988, a empresa possui função social, isto é: criação de empregos, pagamento de tributos, geração de riqueza, contribuição para o desenvolvimento econômico, social e cultural do entorno, adoção de práticas sustentáveis e respeito aos direitos do consumidor.

A questão do setor automobilístico vem apresentando sinais de agravamento. No final de 2020, a Mercedes-Benz parou de produzir automóveis leves, mantendo apenas a manufatura de caminhões e ônibus no Brasil. Outras marcas também enfrentam dificuldades no país, onde a crise política e a oscilação econômica afetam diretamente a produtividade das companhias.

A adoção de políticas públicas é urgente, portanto, considerando que o ramo automotivo representa cerca de 22% do Produto Interno Bruto (PIB) industrial brasileiro. Se levados em conta seus encadeamentos, o efeito tem amplitude, já que o desempenho do setor pode impactar substancialmente a produção de tantos outros segmentos industriais, como os de aço, produtos de metal e artigos de borracha e plástico.

O fortalecimento desse significativo segmento econômico demanda esforços no ambiente de negócios com mais credibilidade, segurança jurídica e uma política tributária simplificada.

A recuperação passa também pela implementação de programa nacional de desenvolvimento com foco em inovação, pautado na transição tecnológica que ocorre no setor automobilístico mundial. Os veículos precisam ser produzidos com maior valor agregado e novas tecnologias de propulsão, como motores elétricos e híbridos. Os sistemas devem ser integrados e inteligentes, o que demanda parques industriais com laboratórios dedicados a Pesquisa & Desenvolvimento, estruturados em parceria com universidades, centros de pesquisa científica e com participação de profissionais brasileiros. Ou seja, há que se investir pesadamente em programas de nacionalização da cadeia automotiva. No mesmo compasso, esse lamentável episódio da Ford revela a necessidade de diversificar nosso modal de circulação de transporte terrestre para o aquaviário e o ferroviário, giro necessário que irá fomentar emprego e renda, em razão da construção de ferrovias, portos e potencialização da navegação de cabotagem.

Acerca do programa de nacionalização, há o exemplo da Alemanha. Por lá, o setor automobilístico recebe expressiva atenção do governo. Em 2011, foi inaugurado o plano Indústria 4.0, que abrange a internet das coisas e sistemas ciberfísicos. No ano retrasado, o país europeu lançou um segundo projeto nacional. Desta vez, com estratégias para ampliar a competitividade da indústria local diante da acirrada concorrência de países como os Estados Unidos. Com foco em 2030, a medida prevê impulsionar o ramo que responde pela geração de quase um quarto do PIB alemão e registra aumento anual na criação de empregos.

Em terras brasileiras, o programa do governo requer remodelagem e regras claras. A indústria de veículos recebe benefícios desde que se instalou em 1957 no país. Nas últimas três décadas, subsídios tributários e financiamento de bancos públicos foram concedidos por meio dos programas Câmara Setorial Automotiva, Regime Automotivo Brasileiro, Inovar Auto e Rota 2030.

Mais do que incentivos, esses projetos deveriam ter oportunizado a competitividade do setor frente às potências estrangeiras, por meio da sofisticação de produtos e do aumento da eficiência. Deveriam ter orientado a manufatura para o mercado externo, o que teria minimizado os efeitos da recessão interna de 2014-2016 e da estagnação econômica de 2017-2019 para o segmento. Em vez disso, esses quatro planos se desdobraram em renúncia fiscal da ordem de R$ 69 bilhões, entre os anos 2000 e 2021.

É sabido que, com incentivo fiscal, a probabilidade de geração de emprego e renda é maior. Mas esse resultado somente pode ser alcançado a partir de um programa com prazos para redução gradual dos benefícios oferecidos pelo Estado. O cronograma de subsídios precisa ter dia para acabar a fim de que a empresa amadureça sua capacidade produtiva e ganhe autonomia financeira. De outro modo, o projeto governamental é ineficiente já na origem.

Aqui as fabricantes – majoritariamente multinacionais com matriz sediada fora do território brasileiro – são beneficiadas com descontos em Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto sobre Importação. Estima-se que a ajuda federal neste ano para o ramo automobilístico será de R$ 5,9 bilhões. Com esse montante seria possível garantir que 20 milhões de brasileiros recebessem o auxílio emergencial de R$ 300 por mais um mês. Somado a isso, há o abatimento na cobrança de impostos regionais das companhias automotivas. Em São Paulo, por exemplo, a previsão é de que o estado abra mão de R$ 343 milhões em receitas, ao longo de 2021.

Programas dessa natureza exigem transparência e mecanismos de controle de contrapartidas para evitar o já conhecido cenário, em que os empresários pagam menos taxas com a promessa de realizar investimentos e assegurar postos de trabalho. No entanto, as companhias apenas protegem seus lucros e enviam dividendos para o exterior.

No caso da Ford, há uma outra conta, a do financiamento público. Nos últimos 19 anos, a empresa recebeu auxílio financeiro do governo brasileiro de aproximadamente R$ 2 bilhões para aquisição de novas tecnologias e exportação de automóveis, sendo no momento R$ 335 milhões em empréstimos ativos. Vale lembrar, ainda, que, com o encerramento das atividades das plantas automobilísticas, restarão também os ativos imobilizados nas cidades em que a Ford operava.

Em 2008, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) emprestou R$ 78 milhões para fomentar o Programa de Apoio à Engenharia Automotiva em Camaçari. Para obter a linha de financiamento, a montadora teve que garantir que iria manter a mão de obra qualificada em seus quadros na Bahia, como os 1.050 engenheiros contratados. Agora é obrigatório que o BNDES cobre com rigor uma solução para o desemprego ocasionado, fazendo a Ford cumprir as cláusulas-padrão do contrato relacionadas aos postos de trabalho. Aos sindicatos que representam os profissionais das Engenharias e Geociências, impõe-se vigilância e esforços concretos em defender na via judicial os interesses dos trabalhadores, visando resguardar os ativos necessários para quitação dos créditos trabalhistas ante as demissões em massa que se avizinham.

Do ponto de vista da responsabilidade social, a recolocação desses profissionais altamente qualificados caberia à Ford. No mundo corporativo, empresas modernas assumem o compromisso de identificar vagas no mercado que atendam às expectativas do colaborador demitido. Com adequadas ferramentas de recursos humanos, elas minimizam os impactos emocionais e financeiros do desligamento não apenas para os funcionários, mas também para os familiares. Adicionalmente, universidades e centros de aprendizagem profissional coparticipam da capacitação dos demitidos no sentido de atualizá-los para o novo ofício, motivá-los a potencializar as habilidades e recolocá-los o quanto antes no campo de atuação.

Por fim, a valorização da mão de obra especializada, da capacidade intelectual e das empresas legitimamente brasileiras é, sem dúvida, requisito para progresso da cadeia automotiva nacional. Por isso, ela precisa ser alvo de políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico. Do contrário, o Brasil jamais irá experimentar seu real potencial econômico.

Conselho Federal e Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia – Confea/Creas

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